quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Microcontos

Um vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.
Cíntia Moscovich (Os cem menores contos brasileiros do século, 2004)
 O microconto surgiu como uma forma de adaptação da leitura à sociedade moderna, que vem se tornando cada vez mais objetiva: nada mais justo que ter literatura acessível no pouco tempo que nos sobra no dia-a-dia.
 Nele, autor e leitor se completam, visto que, nas palavras do autor, estão implícitos personagens e situações, transformando o leitor em co-autor.

 Aponto dois links interessantes de Marcelo Spalding, escritor e mestre em Literatura Brasileira:


Breve ensaio sobre a micronarrativa contemporânea em língua portuguesa:
http://www.msmidia.com/spalding/veredas/popup/textos_detalhes.asp?id=315

Vinícius de Moraes e o Soneto de fidelidade


















imagem: André Koehne
          Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes, ou Vinícius de Moraes, (Rio de Janeiro, 1913-1980) foi um dos poetas mais expressivos do século XX. Bem aceito pela crítica porém, menos lido pelo público do seu tempo.   Foi autor de teatro, com destaque para Orfeu da conceição (1956), e crítico de cinema e cronista de colaboração regular na grande imprensa do país. Com a chegada da Bossa Nova, intensificou sua atuação como compositor e letrista, tornando-se uma das figuras centrais da música popular brasileira.

A fome do primeiro grito
Hilda Hilst


XLII

As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro de tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através de minha vida vão viver.

          De Amavisse (1989)

LXII

Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.

          De Amavisse (1989)
 
 http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet054.htm


"O artista é mais conhecido pelos pequenos retratos de negros e negras realizados a óleo sobre madeira ou a guache sobre papel, “com maestria e com uma certa tensão expressionista”, segundo avaliação de Emanoel Araujo. Tobias tem obra pouco pesquisada ainda, apesar da qualidade e do empenho do artista em desenvolver a técnica pictórica."( http://negroearte.blogspot.com/2009/01/retrato-de-mulher-benedito-jos-tobias.html)


POR QUE LER HILDA HILST?


PÉCORA, Alcir. Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Editora Globo,  2010.   116 p.  IBSN 978-85-250-4845-4


 
"Em geral, nos escritos de Hilda Hilst, a expectativa mística não se realiza senão como estigma, dor e vazio. Maldade e  vileza são os atributos divinos mais palpáveis". ALCIR PÉCORA

 

         Hilda Hilst é mais famosa do que lida, estigmatizada por sua fama de maldita e obscena.
         Alcir Pécora organizou um guia de leitura da autora paulista, falecida em 2004, que vem despertando o interesse das novas gerações, notadamente entre os jovens.  Autora de mais de quarenta títulos, começou pelos de poesia e derivou para textos intergenérios que incluem o teatro, a crônica, o romance e relatos de todo o tipo que, no entanto, mantêm o que Pécora intitula "prosa poética".  E justifica: "Certa discursividade anárquica desordena a narrativa, que se compõe  sucessivamente  como romance memorialístico; diálogos soltos (...)"
         Hilda seria desconhecida do grande público, que sabe dela por referências truncadas e sensacionalistas, mas já passam  de 46 as dissertações de mestrado sobre a autora e suas obras estão sendo relançadas no mercado, fantástico para uma escritora que publicava, em vida, à margem das grande s editoras: "a publicação de quase toda a obra em edições artesanais, em geral muito bonitas, produzidas por artistas amigos, mas sem qualquer alcance de distribuição", informa o pesquisador.  Só depois de sua morte é que a celebridade ganhou contornos públicos, considerada "mulher ousada, original,
avançada para a sua época, louca refinada e explosiva etc", continua. E arremata: "Não é difícil imaginar hipóteses para esse quadro em que a imagem pública da artista como tipo excêntrico predominou sobre o conhecimento da obra." Daí a intenção do livro sobre a autora.
         Alcir Pécora disserta sobre a questão da obscenidade  e a pornografia nos textos de Hilda, em que defende a tese de que ela escapa das intenções da literatura pornográfica de consumo comercial. Para Pécora, "há certamente erotismo na produção poética de registro mais elevado, na qual Hilda faz imitação deliberada da maneira antiga. O seu movimento estilístico, que tende ao sublime, ainda que contraposto a traços de rebaixamento, estabelece as balizas de um desejo de aspiração metafísica, que emula modelos poéticos de erotismo a lo divino,  à imitação da poesia mística seiscentista da península ibérica, nas quais o amante é tomado como análogo de um desejo de transcendência.  Mas não há como propor erotismo, a não ser como redefinição radical do termo, na tetralogia obscena."(p. 19). E defende: "Acontece que os textos de Hilda Hilst ditos pornográficos simplesmente  contrariam a regra de ouro da pornografia banal, que é a simulação realista." (p.20)
         O livro inclui também os textos de Luisa Destri e Cristiano Diniz ("Um retrato da artista" e "Cronologia")e o "Ensaio de Leitura" de Sonia Purceno, além da seção "Estante", por esta última, em que arrola as obras de  e alguma fortuna crítica  sobre Hilda.

         Como o nosso foco é a poesia, cabe finalizar com uma declaração de Luisa Destri e Cristiano Diniz sobre a forma de composição de Hilda Hilst (p. 42-43):

" Para Hilda havia uma enorme diferença entre o processo de criação da poesia e o da prosa de ficção. O primeiro era definido como um estado febril que inesperadamente a tomava por dias consecutivos. A autora começava anotando um verso aqui, uma frase ali. O processo se intensificava e os poemas tomavam forma.

Sua mesa de trabalho começava a encher-se de papéis. Não importava o dia, a hora ou o que estivesse fazendo; poderia estar lendo, tomando banho ou assistindo à televisão (o que se tornaria um de seus passatempos favoritos, especialmente quando acompanhado de
doses de uísque), os versos "vinham", "eram recebidos" a qualquer momento enquanto ela se encontrava neste "estado poético". Assim, em sua opinião, não adiantava se
sentar e se propor a escrever um poema se não estivesse nesta condição. O "receber", entretanto, não era obra apenas de centelhas divinas. Hilda reconhecia que leituras, estudos e, principalmente, questionamentos precediam esse momento "imprevisto" de criação poética. A partir da preparação, portanto, é que a poesia se tornava possível, embora o estudo não parecesse suficiente para explicar a origem da intuição."        

www.antoniomiranda.com.br

Ai vai o Link !

Neste link você vai encontrar artigos, entrevistas, cronologia e bibliografia sobre Antonio Candido importate critico
literario brasileiro.
Link:  http://www.pacc.ufrj.br/literaria/umabibliografia.html

Dica!

Esta em cartaz a peça infantil O Cavalinho Azul de Maria Clara Machado.
Sábado e domingo as 17:00 hs.Teatro dos Quatro, Shopping da Gávea.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.
Em  cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;

Em cismar –sozinho, à noite–

Mais prazer eu encontro lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;

Sem que disfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá. 

 
De Primeiros cantos (1847)
 

Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa


Conto 16 - Partida do audaz navegante de Guimarães Rosa

Olá a todos,
Deliciem-se com o conto que deu origem ao nome no blog.
Boa leitura!


        Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se
perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas dos olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e Brejeirinha elas brotavam num galho. Só o Zíto, este, era de fora; só primo. Meia manhã  chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se
enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de
um morro e o longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino. Da Brejeírinha, menor, muito mais. Porque Brejeírinha, às vezes, formava muitas artes.
        Nesta hora, não, Brejeirínha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no caixote de batatas. Toda cruzadlnha, traçadas as pernocas, ocupava-se com caixa de fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, lourocobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha nãocomprida, o perfilzinho agudo, um narizlnho quecarícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora o xíxixl e o empapar-se da paisagem as pestanas tiltil. Porém, dissese dizia ela, pouco se vê, pelos entrefios: " Tanto chove, que me gela!" Aí, esticou-se para cima, dando com os pés em diversos objetos. "Ui, uite!" rolara nos cachos de bananas, seu umbigo sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. ..... E o cajueiro ainda faz flores... acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvínha no bruaar e a pálida manhã do céu. Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligentil. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página. Cíganinha e Zito nem muito um do outro se aproximavam, antes paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrirase à espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. " Eu sei por que é que o ovo se parece com um espeto!" ; ela vivia em álgebra. Mas não ia contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações: "Eu hoje estou com a cabeça muito quente.. ." isto, por não querer estudar. Então, ajunta: " Eu vou saber geografia." Ou: "Eu queria saber o amor.. ." Pele foi quem deu risada. Ciganínha e Zíto erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se.Mas, Ciganinha, que se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não agüentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda se envoava.
        "Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?" Brejeirinha especulava. "É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo.. ."Pele lambava-lhe um tico de desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz. Brejeimnha rebica, plcuíca: "Engraçada! ... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforos.. ." Por isso, que avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão, deduzidos de babinhas. "Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou demagogo?" Porque gostava, poetista, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente, controversiosoculposo,sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estaiava numa raiva. Mas Brejeimnha tinha o dom de aprender as tenuidades: delas apropriava-se e refletia-as em si a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. "Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intato, para longe, loõonge no mar, navegante que o nunca mais,de todos?" Zito sorri, feito um ar forte. Ciganlnha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesltada. Mamãe dera a Pele a terrina, para ela bater os ovos. Mas Brejeminha punha mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não detendo em si o jato de contar:
        "O aldaz navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O aldaz navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: "Vocês vão se esquecer muito de mim?' O navio dele, chegou o dia de ir. O aldaz navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indose embora do navio. O navio foi saindo do perto para o longe, mas o aldaz navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive batia as lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: 'Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...' Então e então, outro disse:  'Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...' Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse:  'Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...' Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar... Pelé levantou a colher: "Você é uma analfabetinha 'aldaz' ".  "Falsa a beatinha é tu!" Brejeirínha se malcriou. "Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?" e Ciganinha se feria em zanga.
        "Porque depois pode ficar bonito, uê!" Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva:
        "Antes falar bobagens, que calar besteiras..." Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando.
        A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou. Só era março compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam. Soltavamse as galinhas do galinheiro, e o peru. Saíase, ao largo, Nurka. O céu tornava a azul?
        Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. "Ah, e você vai conosco ou semnosco? "Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada, desferia chuf as meigas: "Que nossa vergonha! .. ." e a dela era uma voz de vogais doçuras. A manhã sefaz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra a saia.De impulso, se alegraram. Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não chegar perto das águas perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa pessoa de acompanhar, um meiozinhohomem, leal de responsabilidades?
        Cessou-se a cerração do ar. Mas tinham de vestir outras roupas quentes.  "Oh, as grogrolas!" Brejeírinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave.  "Vão com Deus!" Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.
        A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinola. Tão mesmo assim, os dois guardachuvas. Num avante Brejeimnha e Pele. Debaixo do outro, Zito e Cigamnha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka corria, negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava, viase a casa, branquiria com a lista verdeazul, a mais pequenina e linda, de todas, todas, Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam.
        Pele se crescia, elegante. E ágil ia Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava pés para dentro, feito um periquitinho, impávido.
        No transcenso da colíneta, Zito e Ciganinha calavamse, muito às tortas, nos comovidos nãofalares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira, pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no que Brejeirinha chamava de "o bovino" altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali, com efeito, andavam bois: "o boi, beiçudo"; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que mamãe tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era mentirinhas. E, o que pois: "Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado..." Correu, com Nurka, pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou: " Você vai buscar um audaz navegante?" Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capim e floriu-se: estendem-se, entremunhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de pálpebras.
        O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos bons bambus, e às pedreiras de beirario,ouvindo o ronco, o bufo d'água. Porque, o rio, grossoso, se descomporta, e o ríachinho porém também, seu estuirlo já feio cheio, refuso, represado, encapelado pororoqueja. "Bochechudo!" grita-lhe Brejeirinha. Sumiuse a última arelinha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo despropositarse, o bulír de bolhas. Brejeimnha já olhou tudo de cor.
        Cravou varetas de bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostanclo de mar: " O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho.. ." Lamentava-sede não ter trazido pão para os peixes. "Peixe, assim, a esta hora?" Pele duvidava.
        Divagava Brejeirlnha: "A cachoeírinha é uma parede de água.. ." Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. "Você já viu jacaré lá?" caçoava Pele. "Não. Mas você também nunca viu o jacaré não estar lá.Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar.. ." Mas, Brejeirinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de olhos passarinhos. Demorava-se, aliás, o subir e alargar-se da água, com os mileum movimentos supérfluos.
        A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caldo, por causa do chovido do molhado. Ciganlnha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele safra a colher um feixe de flores. Mais não chuviscava. Brejeirmnha já pulando de novo. Disse: que o dia estava muito recitado. Voltava-separa a contramargem, das mais verdes, e jogava pedras, o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entretcr, parece que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desagachar, logo gira nos pezlnhos, quer Clganínha e Zito para ouvirem. Olha-os. "O aldaz navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava umamoça, magra. Mas o mar veio, ém vento, e levou o. navio dele, com ele dentro, escrutínio. O aldaz navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O aldaz navegante se lembrava muito da moça. O amor é original... Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. "Nossa! O assunto ainda não parou?" era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um "ah!" e quis que continuou: "... Envém a tripulação... Então, não.Depois, choveu, choveu. O mar se encheu, o esquema, amestrador... O aldaz navegante não tinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava... Ele, com o medo, intato, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...
        " E daí?"
        "A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O aldaz navegante, o perigo era total, titular... nao tinha salvação... O aldaz... O aldaz...
        "Sim. E agora? E daí?" Pele intimavaa.
        "Aí? Então.., então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E
pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...
         "Naão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu! E olha o seu 'aldaz navegante', ali. É aquele..."
        Olhou-se. Era: aquele a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de límugem, e às pontas dos capins chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e fiexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.
        Brejeírlnha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no chão umas flores. "Ah! Pois é, é mesmo!' e Brejeirinha saltava e agia, rápida no valerse das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas josésmoleques, douradinhas e margaridinhas e veio espetálas no concrôo do objeto. "Hoje não tem nenhuma flor azul?" ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram pal.mas. "Pronto. É o aldaz navegante.. ." e Brejeirinha criavao de mais coisas folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o "bovino", se transformava.
        Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha teme demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a meiga. Que: "Então? A estória não vai mais?Mixou?"  
        "Então, pronto. Vou tornar a• começar. O aldaz navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se.Arres! O aldaz navegante, pronto. Agora, acabouse mesmo: eu escrevi 'Fim'
        "De fato, a água já se acerca do "aldaz navegante", seu primeiro chofre golpeavao. "Ele vai para o mar?" perguntava, ansiosa, Brejeirmnha. Ficara muito de pé. Um ventínho faz nela bilobilo acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos, os cabelos. A chuva, longe, adiada.
        Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade.  "Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste tempo.. ." E:  "Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?" E: "
Se Deus quiser, eu venho.. ." E: "Zito, você era capaz de fazer como o audaz navegante? Ir descobrir os outros lugares?" E:  "Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais bonitos, quem sabe?.. ." Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e
felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa assim rosaamorespínhos saudade.
        Mas, o "aldaz navegante" agora à água se apressa, no vir e ir, seu espumitar chegalhe já reemredor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto em firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro, colorido, estrambótico, folhas, flores.  "Ele vai descobrir os outros lugares.. ."  "Não, Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!"  "Uê? O quê? "Então, Ciganinha, cismosa, propõe:  "Vamos mandar, por ele, um recado?" Enviar, por ora, uma coisa, para o mar. Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejerinha um cuspinho; é o "seu estilo". E a estória? Haverá, ainda, tempo para
recontar a verdadeira estória? Pois: "Agora, eu sei. O aldaz navegante não foi sozinho; pronto!
Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estrito. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes..."
        Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou. Brejeírinha e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo "intato" o vão do trovão? Nurka latiu, em seu
socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar. Antes, porém, outra, fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.
        "Mamãe! "
        Deitouselhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo pega uma noz. Brejeírinha ri sem til. E, Pele:
        "Olha! Agora! La se vai o 'aidaz navegante'!"
        "Ei!"
        "Ali!"
        O Aldaz! Ele partia. oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o levavam, o audaz navegante, para sempre, víabundo, abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz no pináculo de uma trampa seca de vaca.
        Brejeiinha se comove também. No descomover-se, porém, é que diz: "Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo, é com um espeto!"
        De novo, a chuva dá.
        De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas.



Fonte: barichello.googlepages.com/partida_do_audaz_navegante.pdf

Carolina S Lacerda Medeiros
Edição completa: Suelen F. Lyszy